SOMBRAS E POESIA
Acordei atordoada com a forte claridade que vinha da janela. Parecia que o mundo transpassava minhas sensações ainda sonolentas e as tornavam a imagem do que meus olhos ofuscados não viam. Puxei as cortinas e sentei na cama. Precisava de um tempo para compreender a noite entrecortada, os silêncios, as aflições... Nada é mais desesperador do que se perder nos labirintos oníricos sem conseguir acordar. De repente, os olhos não resistem à brancura do amanhecer e abrem-se assustados, devolvendo os enredos ao inconsciente. O esquecimento das angústias mais íntimas, a lembrança dos compromissos diários, a latência dos desejos... Se ainda recordasse, poderia realinhar os travesseiros para prorrogar os pensamentos fugidios.
Saí sem compreender o meu estranhamento. A porta replicou um som surdo e lá estava eu no mundo. A luz viva camuflava a irregularidade do solo e transformava o asfalto numa infinita superfície espelhada. Um caminho intenso margeado de sombras... Sombras? Procurei meu duplo e não encontrei. Estranhamente, estava marcada apenas pelos passos ainda presos ao chão. Não havia reprodução do intenso foco de luz que marcava o amanhecer. Senti medo, vertigem, solidão... Não tinha em que apoiar a existência, marcar no caminho a extensão do meu trajeto. As pessoas passavam e me penetravam com suas sombras, conseguia sentir os pensamentos apressados, as idéias fragmentadas, os anseios, mas não conseguia me perceber duplo, com a realidade cicatrizada na representação. Com a sombra perdida em transparência, eu era a extensão de uma circunstância cerceada sem projeção para frente ou para trás, como se acordasse de súbito sem divisar os tantos planos de percepção. Eu era uma palavra solta, um verso nômade em busca de um poema... Estava condenada ao zênite. O sol percorria o seu itinerário no céu, mas em meu corpo era a projeção do apogeu. Acostumei-me à estranha sensação de ser sem ter a certeza do outro. Era o passo acelerado, o movimento tímido, o desejo entranhado, a raiva partida em alguma privação... Avancei até uma noite quente e sem contornos. Uni os versos que descobri e adormeci sem inquietações, com um sonho tranqüilo embalado nas impressões infantis guardadas na memória. Acordei com a luz pastel da aurora. Um forte cheiro de café recém-coado, um suave despertar no tempo redescoberto, uma leve brisa a ventar os papéis soltos... Ainda sonolenta, tropecei em minha sombra quando levantei... Ela estava ali, deitada sob meus pés, como se nunca tivesse se ausentado.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 03/02/2006
Alterado em 03/02/2006 |