IARA – O ABANDONO DE TODOS NÓS
“Mas vós, por favor, não deveis vos indignar,
toda criatura precisa da ajuda dos outros.” Poema do Medo - Bertolt Brecht A pequena não era batizada ou registrada. Sua existência estava marcada no coraçãozinho acelerado e num leito de hospital desde o seu prematuro nascimento. Sua mãe a chamava de Iara. Com dois meses, foi encontrada com um choro sufocado dentro de um saco plástico nas águas da Lagoa da Pampulha. Ao contrário da lendária Iara, mulher mitológica que seduz os homens com seu forte canto e os leva enlouquecidos às profundezas das águas, a recém-nascida foi encontrada ao abandono, embrulhada num saco preto, por um homem que passava por acaso e se assustou com os pequenos sons. Um filhote! Um bebê! O poder de sedução do ser mitológico; a fragilidade do ser humano. Iara é resgatada, mas não poderá esquecer que fora condenada à morte pela própria mãe. Um trauma que sempre virá à tona, um medo que não cicatrizará no inconsciente. O abandono de menores não é uma novidade. Na Grécia clássica era comum o abandono de crianças, principalmente de meninas, que, na melhor das hipóteses, seriam encontradas por uma mãe estéril e incorporadas novamente na sociedade. Em Esparta, conselhos de cidadãos poderiam definir se uma criança merecia viver ou não de acordo com a sua constituição física. A mitologia grega está repleta de narrativas: Édipo é abandonado pelo próprio pai depois de ser advertido por um oráculo que o filho seria o responsável pela sua morte; Orestes é abandonado, cresce distante e volta para vingar a morte de seu pai Agamêmnon, matando sua mãe Clitemnestra e o amante... A bíblia também nos traz relatos terríveis de desamparo e crueldade. Mitos que estão presentes no inconsciente coletivo e traduzem as ações dos personagens no curso da história. Além dos casos de crianças abandonadas registrados diariamente, existem os abandonos consentidos pela sociedade: dos pais que deixam os filhos na rua em busca de sobrevivência desde a tenra idade, ou dos mais abastados que ficam indiferentes à educação, deixando tudo por conta de babás, professores, parentes, colegas... Falta afeto, compromisso, responsabilidade... As notícias de jornais, os depoimentos desencontrados da mãe, a afirmação do suposto pai que desconhecia até mesmo a gravidez são diluídos nas ligações de pessoas interessadas em adotar a pequena. A sociedade, envolvida na tirania das imagens do bebê embrulhado para a morte, reage e se solidariza. O que levaria uma mãe a tomar uma atitude tão extremada? Depressão pós-parto, psicopatia, abandono, medo...? Não há como não rasgar no próprio ventre a ferida das tantas ausências e as mortes que não conseguimos resgatar à margem das notícias adormecidas.
Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 31/01/2006
Alterado em 01/02/2006 |